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RECORDAÇÕES DE UM PAI AMOROSO

por Jan Hunt, psicóloga diretora do "The Natural Child Project"

Meu pai foi criado em uma grande família de imigrantes russos ao Norte de Ohio. Uma família com onze filhos e muitos parentes próximos.

Papai costumava contar suas memórias de infância. Uma vez ele descreveu como transcorria o dia em sua casa: sua mãe fazia uma lista das transgressões e quando seu pai chegava do trabalho, cada transgressor levava uma chibatada. O máximo que sua mãe fazia era suplicar: "Na cabeça não! Na cabeça não!" Meu pai nunca se referiu  a esse tratamento como "abuso", mas ele sabia que essa não foi a melhor forma de cuidados parentais que ele poderia ter recebido.

Para ajudar nas finanças da família, meu pai vendia jornais na rua desde os oitos anos de idade. Ele estava proibido de voltar para casa se não tivesse vendido todos os jornais. Ele provavelmente não chamaria isso de abuso tampouco, mas ele tinha um profundo anseio de dar a seus filhos, como costumava dizer, a infância que ele perdeu. Ele nunca bateu em seus próprios filhos, e embora ele às vezes interpretasse  mal nossas intenções, ele sempre tentava fazer o que acreditava ser de melhor proveito para nós. Em uma ocasião eu lhe perguntei como ele havia sido capaz de tratar meu irmão e eu melhor que seu pai o havia tratado e ele respondeu simplesmente: "Eu queria que meus filhos tivessem uma vida melhor do que eu tive". Meu pai foi um bom exemplo de um homem que conseguiu encontrar em seu coração mais compaixão pelos filhos do que ele mesmo havia recebido em sua infância.

Uma vez perguntei para minha mãe como papai foi capaz de ser tão amoroso apesar de ter sido tão castigado por seu próprio pai. Mamãe respondeu depressa: "Sarah. Sua irmã Sarah o protegeu". Achei interessante que minha mãe, que nunca estudou as motivações psicológicas do comportamento, tenha tido essa compreensão tão perspicaz. Devo muito a Sarah - e ela mesma deve ter sido protegida por alguém (1) . É isso que me dá esperança: o amor passa de uma geração a outra tão facilmente quanto a dor.

Papai morreu em 1990, aos oitenta e sete anos. Nos últimos anos de sua vida ele sofreu de câncer de próstata, deficiência visual e uma fragilidade generalizada. Próximo ao fim de sua vida ele estava quase cego, um pouco surdo e usava um andador. Toda a vida magro, ele tornou-se dolorosamente esquálido. Um homem que desfrutou de mais de 80 anos saudáveis e ativos, foi vencido. Mas você jamais teria ouvido isso dele. Poucos meses antes de sua morte, quase cego e andando com grande dificuldade, ele ficava tão animado para sair para jantar fora quanto uma criança pequena. Um dia, na visita que acabou sendo nosso último encontro, ele usou o andador pela primeira vez em minha presença. Devo ter demonstrado surpresa, pois ele envolveu meus ombros com seu braço e disse: "Na verdade eu não preciso disso, estou usando só para agradar sua mãe". Depois que papai morreu, comentei isso com mamãe. Nós ficamos encantadas com a força de seu orgulho, o qual nem o câncer foi capaz de quebrar.

Embora papai tenha vivido quase noventa anos, sempre vou me lembrar dele em seus quarenta anos, tão especiais são as minhas recordações de nossos momentos juntos quanto eu era pequena. Embora trabalhasse muito e fosse muito ocupado, inicialmente como representante comercial e depois comerciante, ele conseguia ter tempo suficiente para mim e em minha memória eu o vejo, como Ozzie Nelson (2) , sempre em casa.

Minhas lembranças mais queridas são de nossas voltas em torno do quarteirão - ele andando, eu de triciclo. Eu devia ter três ou quatro anos. Depois de dobrarmos duas esquinas, podíamos ver as casas que davam de fundos para as casas de nossa rua, e eu me entusiasmava. A maioria dessas casas eram em estilo Tudor inglês, enquanto as de nossa rua eram casas de madeira e tijolo típicas da arquitetura norte-americana dos anos 40. Eu me entusiasmava porquê papai fazia de conta que estávamos na Inglaterra - não só a arquitetura inglesa, mas a própria Inglaterra! Lá estava eu, aos três anos, uma viajante internacional, visitando diariamente a Inglaterra. Papai sempre adorou viajar, mas mais do que isso, ele sempre acreditou em sonhos.

Papai viajava muito quando eu era pequena, mas ele deixava claro que  sentia muita falta de nós quando estava longe de casa. Eu tinha uma coleção "internacional" de bonecas , cada uma vestida em seus trajes típicos. Sempre que papai voltava de uma viagem de negócios ele me cumprimentava com grande prazer e entusiasmo e me presenteava com uma boneca. Mas não eram as bonecas em si que importavam para mim e nunca me pareceu que ele estivesse usando presentes como substitutos de sua presença. Essas bonecas eram simplesmente seu modo de me dizer que ele havia sentindo saudades e que ele pensava em mim quando estávamos distantes - uma mensagem sutil para uma criança pequena, mas ele conseguia comunicar isso. Ele descrevia detalhadamente sua ida à loja, suas razões para ter escolhido aquela boneca em particular e um pouco sobre o país que ela representava. Ficava evidente seu prazer em me fazer feliz.

Papai tinha um excelente senso de humor. Ele parava o que estivesse fazendo para escutar uma piada, e ríamos muito em casa. O comediante favorito de papai foi Jack Benny, de modo que todos os anos ele também fazia "39". Quando eu mesma fiz 39 anos, ele ficou encantado por termos então  "a mesma idade". Ele me deu o feliz presente de tratar com humor as situações mais difíceis. Pouco antes de papai morrer, eu sonhei com sua morte. Em meu sonho senti muita tristeza e queixei-me a uma amiga: "Mas agora não posso mais lhe contar nenhuma piada".

É raro escutar isso quando morre um homem de sua idade, mas é verdade quanto a meu pai: "Ele era tão jovem".

Esse artigo é dedicado com amor e gratidão a Nathan Baron ( 1903-1990).

VEJA:  foto de Jan Hunt com seu pai, aos 5 anos de idade, no artigo original.

referências:

(1) Allice Miller, "The Essential Role of an Enlightened Witness in Society".

(2) "The Adventures of Ozzie and Harriet"     Programa de TV, 1952-1966.

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